Quando Ana me disse “caiada” a imagem formou-se completa e irrepreensível, o nascimento de uma lembrança impossível e que, no entanto, me constitui.
É uma casa. Construída em uma praia, por mão anônima e para a qual a minha mão é também anônima. Não há quartos, apenas um longo e iluminado cômodo (são seis janelas) que, ao fundo, faz uma curva para o banheiro. As portas de tábuas pintadas de amarelo, como as janelas, não têm maçaneta – basta um pequeno trinco, também coberto de tinta amarela. Não há forro e, entre as telhas de barro, intui-se as aranhas e lagartas. As teias. Os casulos. O chão da casa é queimado, por isso de tom avermelhado e, no início da tarde, a luz do sol, direta e dura, faz brilhar o chão inteiro. A fundação arde. A casa é caiada, um branco escorrido mal cobrindo as paredes. O som das ondas ecoa entre a camada fina de cal e o tijolo coberto de cimento. A casa abriga alguém de cabelos sempre molhados. Alguém que não quer mais, talvez, enxugar os cabelos. Seria Ana? Não. Ana está ao meu lado, alguns segundos após ter pronunciado a palavra “caiada” (falava de um poste) e a casa ter caído, construída, sobre os meus olhos. Não é que eu deseje a existência da casa, ou que eu planeje a sua construção – não percebo entre mim e ela qualquer vínculo, afetivo, empreendedorístico, imaginário. Esta casa está pronta há anos em alguma parte do mundo e a pronúncia que Ana fez da palavra “caiada” abriu a porta da casa, pois esta casa eu enxergo simultaneamente de dentro e de fora – é isto o que me convence em definitivo que jamais estive lá. Onde fica essa porta que a voz e a palavra de Ana abriram? A porta das palavras se parece com alçapões, mas sem a abertura. Mas então o que se abriu? Algo foi aberto, mas em recusa permanece selado. Então esta casa ampla e iluminada é, na realidade, sombria. A sombria invenção. A sombra da invenção.
- É por isso que meu vestido está manchado de branco. Eu não reparei nos postes caiados e me encostei em um, esperando o ônibus. Quem me avisou foi uma senhora, ela também toda manchada – tinha acabado de acontecer com ela. Essa senhora parecia tanto minha mãe. Por um segundo esperei que ela dissesse “Outra patetice da Ana” e não respondi logo. Mas é claro que, logo depois, respondi, entendi o que estava acontecendo e agradeci. Eu também ainda tô sonolenta, saí de casa às pressas porque eu deitei pra um cochilo e acordei atrasadíssima. E eu tenho certeza que estava sonhando. Até fechei os olhos quando me encostei no poste, eu ando tão cansada. E aí essa senhora, tão parecida com a minha mãe. Mas parecida se eu pudesse saber como minha mãe seria se tivesse chegado à idade dela. A última vez que sonhei com ela, nós estávamos muito velhas e muito esquecidas. A gente tava morando naquela casa que ela planejou construir. Eu até avisei a senhora na parada. Falei “A senhora é tão parecida com a minha mãe” e ela respondeu “Sempre me dizem isso” e logo subiu num ônibus. Engraçado, né? Vai saber o que ela achou que eu disse, ou o que ela entendeu do que eu disse.