Alcance
VAGA
Três meses do fim do isolamento, da prefeitura ligam para Ana requisitando seu serviço de escritora. “Cidade pequena, a gente conhece quem morreu. Vamos publicar um livro contando a vida de cada um”. Ana escrevia manuais de instrução. Não deixa de ser um manual, pensou. “Os parentes vão te ligar”. Ligaram, a última foi uma mulher, voz tão árida que Ana quase emudeceu. “Era meu filho. Tava preso”, “E o que a senhora quer escrito?”, “Não sei”, “Do que ele gostava?”, “De moto...”, “Ok. Que mais?”, “Minha filha...”, “Diga”, “O que eu faço? Fico em casa?”, “Não... já pode sair agora”, “Pra onde?”. Não era um manual. A caneta de Ana, trêmula; e duas lágrimas. “Podemos ver o mundo de novo”, “Escreve que ele nunca mais vai ver nada”. Desligou. As portas fechadas para todas as estradas.
Uruá, quem vem lá?
(Primeiro verso de uma cantiga que vovó cantava para mim – nunca consegui descobrir sua origem ou encontrar outra pessoa que a conheça. Em nossa família, ninguém se recorda. Uruá é o nome que se dá às grandes flautas emparelhadas, amarradas no formato de jangadas, tocadas pelo povo Kamayura, das Altas Terras do Xingú, para fins ritualísticos. Para que o ritual ocorra e o instrumento cante, são necessárias duas pessoas).
Elvis ao vivo em Honolulu,
transmitido via satélite para o mundo todo.
Na capa do disco, Elvis, no espaço sideral,
orbita nossa atmosfera
- o planeta ouve sua voz arruinada confessar
Essa é a música mais triste que conheço.

Papai me contou que Elvis nunca fez um show fora dos Estados Unidos.
Ele sempre se lembrava disso admirado:
aquele homem em tantos lugares
e sempre no mesmo lugar,
em tantos tempos,
morto.

Eu não salvei nenhum áudio do meu pai,
nenhum vídeo
(como é possível? Temos registros de tudo hoje em dia),
a voz dele não inunda a Terra
(me lembro de seu canto desafinado, sussurrando a letra de We are the world,
- a parte da Cindy Lauper - usando um lado dos meus fones,
o rosto tão próximo ao meu)
e este poema em nada se parece com ele,
que era expansivo e transparente,

se parece muito mais com a degradação do Elvis
entoando Suspicious Minds em Honolulu
- uma performance que, hoje, faz o seu apogeu parecer um ensaio:
o domínio de si rasgado por seu doce descontrole
os olhos vagos
um colar de flores entre as pedrarias aplicadas no macacão branco e justo
o suor pingando
a voz mórbida
agarrada à vida, agarrando a vida
exigindo mais
do instante em que se esgotou:

lembra o que eu via quando olhava para o meu pai,
muito bêbado, quebradiço e só,
e o ouvia cantar, inteiro olhos e desterro,
Filho, você me ama?