Eu e vovó no museu Emilio Goeldi, 1988.
VOVÓ BILÓ CHORANDO NA REDE,
QUANDO FUI ME DESPEDIR:

As mãos cobrindo os olhos lembram mapas (caminhos antigos, cobertos de mato)
e suas bonecas arrumadas,
como que deitadas,
dentro de uma caixa de papelão que evoca uma cama que suas filhas mortas nunca tiveram.
Vovó, diariamente, parece reencenar essas situações que não aconteceram.
Na velhice é quem poderia ter sido e quem foi,
- está cheia até a flor de memória e Deus.
Não olhou pra mim, como se não quisesse ver novamente
o que já viu tantas vezes:
o anúncio da partida.
O tempo a atravessa e sua morte parece cada vez mais impossível
- dela nasce uma origem.

A pele, terra dura e grávida.

Criança, eu pensava em vovó e perguntava "Mãe, os cegos dormem?"
Vovó fecha os olhos no breu e um sentido salino lhe avisa as lágrimas.
Terra e sal,
vovó come como um favor a todos nós.

Nunca ela foi tão fértil
- seu corpo transborda e vamos barrando-lhe com remédios, repousos e exames.
O amor.

Vovó compreende, mas ainda não me olha e eu só posso apagar a luz,
que bobagem,
vovó já sabe que vivemos na escuridão.
HOJE, DIA DE FINADOS.

Meu amigo me diz:
a porta está aberta,
hoje não existem as fronteiras entre nós
e eles.

Mas onde eles estão?

“Aqui” é uma palavra tão ampla,
nenhum mapa pode cartografá-la.
E sem saber onde começa,
ou onde termina,
o “aqui”
por onde começamos a procurar?

Atrás de qual móvel?
Devemos arredar o sofá da parede?
Espiar no encardido canto da cozinha, há muito escondido pela geladeira?
Mirar com o olho; alvejar o que? A quem?
Enxergamos algo? Trata-se de um espelho?

Toda fronteira é um desejo

Deixamos de cultivar algum hábito,
como que esquecendo de almoçar com a madrinha aos domingos.
Abandonamos,
distraídos e ingênuos,
um costume,
certa rotina, que,
agora,
nos faz falta.
Se perdeu.

Reivindicar o quê?

Mas,

às vezes
– quando passamos debaixo de uma escada,
ou antes de o cérebro conseguir aniquilar inteiramente nossos sonhos,
para que seja possível o despertar –
uma espécie de palavra muda, há muito desacreditada, insiste,
a estrangeira intuição:
deveríamos dar ouvidos à ausência,
essa, que sentimos desbotar.

Às vezes, essa impressão
- alguém, talvez, esteja fazendo o longo percurso através do nada
para nos encontrar,
tomar mais uma xícara do café,
que ainda fazemos para dois.

Às vezes, essa desconfiança.

Logo passa e murcha,
mais uma
entre as flores do cemitério
onde só fui uma vez.
Na última vez em que vovó visitou o lugar onde nasceu eu fui junto com ela. Nós estávamos tomando banho juntos no rio Sumaúma, quando ela assumiu o seu ar grave e denso necessário para contar uma história importante. Me disse que quando era muito jovem, passeando de canoa por um igarapé perto dali, ela e seu pai viram, no meio da água, um poço. Os dois ficaram curiosos e assombrados, quem tinha conseguido escavar a água? Meu bisavô, então, pulou no poço, nadou até o fundo e voltou. Quando vovó perguntou, ansiosa, o que havia lá dentro ele respondeu, amedrontado, “outro poço”.