Pensa na casa que habitas.
Pensa, agora, que fazes uma viagem.
Agora pensa nela, vazia.

Não é possível.
Repara que, mesmo vazia,
é do teu ponto de vista que a vês.
Estás sempre lá. Corpo presente.

Mas repara.

Por detrás dos teus olhos
algo pousa a vista em ti.

É a porta.
A parte da casa que abriga o que está fora.
"Desculpe, sou poeta, lido com o específico".
(Lucia Berlin)
VISITA

Bom dia, dia 9.
Sim, pode entrar.
Você gostaria de algumas torradas?
O dia 8 não quis...
ele estava um pouco nervoso.
Mas eu fiz essas para você.
E também tem café, fique à vontade.

Vocês são muito calados, os dias.
Eu entendo,
é preciso que vocês nos ensinem coisas difíceis
- ninguém quer mostrar a uma criança que o fogo queima, por exemplo,
mas algum dia terá que ensinar.

Nunca mais pude reencontrar o dia 14 com a mesma distração,
mas, eu sei, era preciso haver um dia para vovó morrer.
Sim, realmente, não é nada pessoal
e nem foi o dia 14 quem escolheu.

Coma e fique bem forte,
e faça o que precisa ser feito.
Na maioria das vezes demoramos a entender o que acontece
- nem todo mundo é tão espiritualizado quanto gostaria
e nós somos mesmo um pouco estúpidos.
Mas depois entendemos, ou aceitamos,
não sei bem.

Acho que nos cansamos de lutar contra os dias.
PAI,
nasci muito longe do senhor
e queria passar um tempo no seu corpo,
te conhecer de dentro,
dormir pendurado pela corda da sua voz
- tudo o que não teremos, pai.
Tudo o que temos
é essa gradativa espera em que,
lentamente,
te vejo nascer de dentro do meu outro extremo
e geramos um mundo,
bruto,
sem útero
- um punho,
onde me seguro, pai,
é dele que eu me empunho.
MARGENS

(Cortina. O filho caminha, pensativo, à beira do rio. Do outro lado sua mãe, morta, acena. O rio segue)

- Quando a senhora morreu, mãe?
- Eu podia dizer que desde sempre, mas foi ontem.
- Ainda não me avisaram.
- Não contei a ninguém; seu pai acha que estou fazendo crochê e rezando. Imagina o susto.
- Como é?
(Tempo)
- Meu filho, não gosto de metáfora.
- Então me diga, o que é?
- Vi uma coisa ao meu lado, respirava fundo e era muito distante. Mas estava do meu lado mesmo. Me deu um susto; parecia que você estava chorando. Aí tudo se juntou numa bola pequena e funda. Entrei nela e acho que quando ainda passava o meu pé direito, morri.
- Então é uma bola?
- Sim. Lá dentro só cabia eu, e vi o mundo inteiro.
- Tem comparação?
- Várias, você sabe. De qualquer modo eu morri mesmo.
- E a senhora foi para outro lugar?
- Sim.
- Então agora a senhora fala comigo de outro lugar?
- Sim. Estou bem na sua frente, filho. Eu te amo, meu filho. Vá descansar.

(Tempo. O filho ensaia uma despedida. A mãe desaparece. O rio segue. Cai o pano.)