“O seu exame para HIV deu positivo”. A sala era laranja, as cadeiras eram verdes. Nenhuma piada me ocorreu. Ele me explicou o que eu deveria fazer, mas eu acho que não ouvi. Ele usava óculos, parecia ter vindo de algum lugar apenas para falar comigo, porque estava usando uma roupa tão casual: camisa polo, bermuda. Quando percebi que estávamos em silêncio há um certo tempo, perguntei “Eu posso ir?”, como se ele fosse o meu professor, como se eu quisesse ir ao banheiro durante uma aula. “Felipe, se você precisar de alguma coisa, nós estamos aqui”. “Obrigado”.
Do que eu precisaria? Do que eu precisaria que ele pudesse me dar?
Saí, andei alguns quarteirões, entrei em um shopping e procurei um espelho. Me olhei, de corpo inteiro. Não percebi nenhuma mudança. Fui para casa. Eu tinha 23 anos, faltava menos de um mês para o meu aniversário. Eu não chorei. Não lembro quando foi a primeira vez que chorei por causa do meu diagnóstico. Era dia 10 de dezembro, aniversário de Clarice Lispector. Chegando em casa quis publicar uma foto dela no meu Facebook. Peguei A hora da estrela na estante. Foi o primeiro livro que li dela, foi o último que ela publicou em vida. Seria bom colocar, junto com a foto dela olhando para a lente da câmera em uma gôndola de Veneza, um trecho de algo escrito por ela. Fui para o final do livro. O final de A hora da estrela é o motivo de eu amar tanto a literatura. São muitas frases desconcertantes. Me detive em uma.
“A vida come a vida”.
Uma palavra morre
Quando é dita,
Se dizia.
Eu digo
Que ela
Se revela
Nesse dia.

[Emily Dickinson]
Escrever, para mim, é fuga e confronto – sempre pesaram mais no papel as palavras que eu não digo. Mesmo agora percebo esse entrave, esse muro que parece se impor entre mim e o que eu quero dizer, o que queima. As lacunas. Este livro, escrito por mim, sobre a minha experiência, não pode dar conta de tudo o que aconteceu, porque nem mesmo a mim é dado saber “tudo o que aconteceu”, e cada texto que eu escrevi pode ser cartografado por mim a partir daquilo que não está lá, do que eu não pude dizer, do que eu ainda não sei. Wislawa Szymborska também escreveu, ao receber o Nobel de Literatura, que, no fim das contas, ser escritor nada mais é do que sentar-se diante do papel em branco e esperar por si mesmo. É uma espera difícil de sustentar. Dura. E é aterrorizante perceber que esta espera está para terminar, que se aproxima o instante em que nos avistaremos nas palavras dispostas em sequência numa linha. Ali, entre uma vírgula e um ponto final, nos olharemos nos nossos olhos, nos estranharemos em espanto e já não poderemos fingir que não sabemos quem somos, o que nos fere e onde dói. É especialmente aterrorizante quando passamos tanto tempo tentando matar a pessoa que aparecerá na folha em branco. Escrever também é algo que ameaça e encurrala.
Este relato me assusta e me assombra. Por isso me atrai.
Sobre as líricas amorosas, sempre se diz que o desejo é a manifestação da ausência. Escreve-se sobre o que não se tem, sobre o que se perdeu ou sobre o que se espera que chegue, como os eu-líricos femininos à espera, no porto, dos homens que partiram para o mar nas antigas cantigas de amor do Trovadorismo. É inquietante pensar no HIV, no meu diagnóstico, como uma relação amorosa, mas parece o mais próximo que consigo chegar de dimensionar o tanto que essa condição direcionou o que quero escrever: a doença parece ser aquilo que me subtraiu algo e, simultaneamente, negá-la era perder mais ainda. As mulheres à espera de seus homens passavam os dias a encarar o oceano que os separava e não a ignorá-lo. A tragédia maior não é a saudade, mas o esquecimento daquilo que faz falta, o apagamento da ferida.
A mulher que afagava
seu sofrimento está morta.
Eu sou a sua descendente.
Eu amo a pele cicatrizada que ela me legou
mas quero seguir daqui contigo
lutando contra a tentação de fazer do meu sofrimento uma carreira.

[Adrienne Rich]
É muito violento ignorar uma cicatriz.
De um momento de precariedade se faz o que? Uma palavra ou outra escapavam à minha obstinação de encobrir, à minha trajetória de implosões. Aprendi a me reconhecer nos estilhaços em que a realidade foi se desmanchando.
Uma fotografia de tio Marciel, que vi pela primeira vez há muito tempo, marcou minha adolescência. Ele está sentado de perfil em uma varanda, uma perna dobrada em ângulo e a outra solta no ar, balançando a alguns centímetros do chão. Ele fuma um cigarro e parece estar muito tranquilo, usa uma camisa vermelha de botão, um cinto de couro preto, uma calça jeans azul escuro, meias vermelhas e mocassins pretos. Realmente, éramos muito parecidos. Ele também amava as roupas, as cores. A foto havia sido feita à noite, à beira do rio Sumaúma, na região de Igarapé-Miri de onde emigrou quase toda a família do meu pai. Gosto de imaginar que ele estava olhando para o rio, que ele estava pensando em ir embora. Ele falava baixo, como eu falo muitas vezes. Na realidade, não sei mais o que ele era e o que eu projetei de mim nele. Se ele estivesse vivo durante a minha adolescência, teríamos nos reconhecido? Os meninos “delicados” logo se entendem – sabem do que estão correndo, as ameaças que os atormentam. O meu pai sempre permaneceu calado e muito sério em todas as vezes que apontaram, na frente dele, as semelhanças entre mim e tio Marciel.
Sinto uma saudade estranha: parece que a ausência dele passou a me afetar porque nunca pude realmente conhecê-lo.
Quero visitar o túmulo dele, intuo que isso é necessário. Perguntei à minha mãe onde ele está enterrado e, preocupada, ela me disse que é no cemitério Santa Isabel. Ela não acha uma boa ideia que eu vá até lá. Concordo que é mórbido, talvez um pouco neurótico – mas não se explica rituais. Se executa.
Depois que minha família soube que eu sou soropositivo, ninguém voltou a nos comparar, mas eu continuo a sorrir como ele sorria.

*

Foi apenas ano passado que minha madrinha me contou ter sido ela quem fez essa foto do tio Marciel - disse, ainda, acreditar nunca ter visto a foto revelada, pegou um susto quando a encontrou no meu livro. Ela é uma mulher lésbica, expulsa da casa da mãe pelo meu pai, seu irmão e, na época, melhor amigo dela. A foto foi feita numa das poucas vezes, nos primeiros anos depois de sua expulsão, em que ela visitou a parte da família que não a rejeitou, a parte que não abandonou a floresta. Ela e tio Marciel estavam ali, exilados, nas raízes da família.

"Fundamentalmente, toda doença é um julgamento de Deus. Adão e Eva não conheciam qualquer tipo de corrupção antes da Queda (...). Todas as doenças, do resfriado comum ao câncer, fazem parte da maldição, e nós que vivemos em um mundo amaldiçoado estamos sujeitos à deterioração (...). Já que as DSTs, como a AIDS/HIV, são associadas, em sua maior parte, ao pecado sexual, elas devem ser consideradas parte do ‘castigo’ que revela ‘a ira de Deus’ contra a maldade dos homens (versículo 18). A frase chave é ‘Deus os entregou’, que ocorre três vezes. Deus os entregou à impureza sexual (versículo 24), a paixões vergonhosas (versículo 26) e a uma mente depravada (versículo 28). O significado é que a humanidade escolheu seguir o seu próprio caminho, e Deus permitiu. Conceder à humanidade a liberdade de persistir no erro era em si um castigo sobre o pecado anterior”.

[Resposta da organização cristã Got Questions Ministries à pergunta "O que a Bíblia diz sobre a AIDS/HIV? É a AIDS/HIV um julgamento de Deus?”]
“E não há punição! Eis o inferno: não há punição. Pois no inferno fazemos o regozijo supremo do que seria a punição, da punição fazemos neste deserto mais um êxtase de riso com lágrimas, da punição fazemos no inferno uma esperança de gozo”.

[Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.]
Uma das histórias que nos contaram sobre a casa foi a de um homem que havia se suicidado ali, na década de 1980. Ele se enforcara no corrimão da escada, em frente à porta do quarto em que eu dormia. Um dos vídeos que editei era composto de três planos: dois do andar de cima e um, o último, filmado do corrimão da escada, a câmera apontada para a porta que dava para a rua. Nesse último plano, quando a minha voz em off termina de ler o poema (que trata do dia em que cheguei à casa vazia e me deparei com uma panela d’água sobre fogo aceso, como se alguém me aguardasse), incluí o som de passos, os meus próprios, que gravei enquanto subia e descia repetidas vezes a escada. Os últimos segundos do vídeo consistiam, então, em uma câmera parada no corrimão, nenhuma pessoa no enquadramento e o som de passos de alguém que não estava lá. Quando mostrei esse vídeo ao Mateus, ele decidiu me contar uma parte da história do suicida que eu não conhecia. Ele hesitou, disse não ter contado antes porque achou que eu poderia me assustar. A voz dele, naquele momento, sem a inflexão sardônica tão naturalmente presente na cadência com que ele fala, não evocava em nada a provocação que, em geral, o diálogo com ele suscita – era, antes, grave, cerimoniosa; às vezes sinto que compreendi que eu e Mateus sempre seremos amigos por esse seu modo reverente de, quando necessário, se dirigir a mim: “Ele se matou porque descobriu que era soropositivo”, ele disse, juntando cuidado em cada palavra, algo de paternal nos olhos. Eu havia filmado o último plano da parte do corrimão onde ele havia se enforcado e onde, há poucos meses, havia um altar, idealizado por Mateus, com diferentes imagens de diversas religiões para o qual contribuí com um único item: uma imagem de São Judas Tadeu, dada a mim por Dona Brígida, uma amiga da família já falecida, quando ela me viu muito doente e foi à sua casa buscar essa estátua para me entregar. É o santo das causas impossíveis.
O som de passos. Alguém que não estava lá. A doença. A morte. Eu, soropositivo, de pé no mesmo lugar em que ele, soropositivo, ficou pendurado pelo pescoço, quem sabe se balançando levemente. Como um pêndulo? Aquele tipo de solidão. Renata me ensinou a não pensar nos suicidas exclusivamente como pessoas desequilibradas que “desistem”. “Quando a gente lê a Sylvia Plath tem que lembrar que ela foi uma mulher que, diante de tudo isso aqui, preferiu morrer”, ela me disse uma vez enquanto atravessávamos a baía do Marajó para celebrar o dia de Ano Novo. Por que não haveria consciência nesse tipo de decisão? Trinta anos atrás, receber o diagnóstico positivo para o HIV significava morrer e, nesse sentido, o suicídio era apenas a antecipação de algo que aconteceria muito em breve, cercado de estigmas que, em geral, lançavam o paciente no desamparo, no abandono e na vergonha, diversas mortes acumuladas. Eu não estou vivo porque “pensei melhor” ou porque fui “corajoso”. Eu não sei por que eu ainda estou vivo, eu não acho que continuar a viver diga alguma coisa essencial sobre quem eu sou. Não existe mérito em viver ou morrer. Ninguém faz por merecer viver ou morrer. A única coisa que me ocorre quando lembro desse homem, enforcado e sozinho na sua própria casa, e o imagino nos instantes antes da morte é “eu também”. “Eu também” o quê? Não sei. Mas sinto que eu também.
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

[Sophia de Mello Breyner Andresen]
Fotografia de Nan Goldin.