CIDADE VELHA

embaixo dessa mesa coloco a areia dos gatos.
quando sento é preciso ter cuidado para não sujar meus pés na merda.
tento parar de fumar,
dizer a verdade;
quero me acostumar nessa casa e até já perdi aqui um poema muito querido.
ontem andei pelas ruas sozinho, observando o carnaval:
um estranho me cumprimentou, apertando minha mão;
um rapaz precocemente calvo, estudioso aplicado da antiguidade latina, das línguas mortas,
me disse, à porta de um bar,
a arte contemporânea não tem rigor
concordei, mas fiz questão de lembrar ana cristina cesar e o seu desejo
sua vontade de dilatar os momentos
ampliar os instantes
reportar os fenômenos.

eu disse para meus alunos que a poesia é um recurso.

espero pelo melhor quando sento nessa mesa cheirando à merda
porque não sei para onde estou indo e a minha janela dá para o muro,
mas depois do muro vem tudo o que existe,
nem precisa imaginar
– então calma.
que bom que eu escrevi.
eu estava morto,
mas não porque eu não estava escrevendo.
eu morri porque é assim mesmo quando a gente vive.
paciência.
mas agora eu voltei,
vamos ver por quanto tempo.

o destino da minha voz é titubear enquanto mastiga as certezas que ela vai cuspir nos outros depois

olha aí,
eu falei que eu estava de volta.
bem que eu senti, sentado no sofá, que isso aqui ia acontecer

- adolescente, corrigi os dentes e aprendi línguas,
me preparei para as provas previstas,
cada série era um ano a menos antes de começar a vida,
mas na vida não existe antes,
ela abarca tudo e areja cada medo.

Eu disse,
voltei.
É no susto que a gente acorda e massageia telepaticamente as cicatrizes.
CIDADE NOVA

Meu Deus,
na cidade temos esses lugares,
essas longas áreas
construídas há não mais que 30 anos
onde se espera que as pessoas vivam e liguem cada objeto,
repondo incessantemente os bebês
e perdendo-se entre ruídos domésticos de liquidificadores
que fazem a comida,
trituram-na,
e de cadeiras arrastadas até a borda
(observação de uma vida que se desdobra em calma
e muito de dor
por aquilo que as toalhas de mesa e as almofadas não cobrem,
aquilo que o som do trabalho levado adiante do lado de fora não abafa,
tanto, tudo aquilo que somos
bem debaixo dos tetos e entre os muros desses quintais generosos
onde criança e adulto e velho e cão evitam lembrar-se
do que os ônibus transportam durante as manhãs e à tarde,
primeiro em direção à e depois de volta da cidade).

Então chove e está tudo desamparado
correndo grande risco de ser compreendido
- essa explosão que se ramifica para dentro da cozinha e da roupa lavada.

E tu andando como te ensinaram a não fazer
e pensando o que tua casa não é,
porque o coração já não pode mais com essa janela vaga
esse leve odor de terra revolvida anos a fio,
quando no passado cada dedo apontava
e cada dente mastigava
a grossa pele do vestígio que os mortos deixaram eras atrás,
antes de serem enterrados à quilômetros de distância.

À parte do epicentro dessa nossa doença.